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Quando eu perdi meu ônibus

domingo, 20 de abril de 2014

-Pro ônibus das seis não tem mais não, moça. Agora só às sete e quinze
-Tudo bem então...
-É uma só, moça?
-É sim
-Tá aqui... Boa viagem!
-Obrigada

Senti tanta raiva! Sempre cheguei meia hora antes e consegui passagem. E lá fui eu procurar um lugar pra sentar e passar os meus 105 minutos seguintes. A rodoviária estava lotada. Tipo, muito mesmo. Um monte de gente diferente andando de um lado para o outro. Não que isso fosse estranho pra mim. Era impossível contar a quantidade de vezes que eu já tinha passado por lá. Mas talvez fosse a primeira em que eu parava de pensar no que (ou em quem) me esperava e começava a reparar no que (ou em quem) estava ao meu redor.

Mesmo sem óculos, enxerguei um lugar vazio. Do lado direito, uma mesinha. Do esquerdo, um cara estava sentado. Lendo. Com uma mala enorme ao lado.

Sentei. Coloquei os fones de ouvido. Respondi o Whatsapp. Lembrei de mandar mensagem pro meu pai avisando que eu não iria pra casa dele no feriado. Tentei abrir o Snapchat e o Instagram, mas a internet do meu celular estava péssima. O Vidas Secas estava na bolsa, mas aquele era um livro que, pra mim, exigia um pouco mais de concentração. Não ia adiantar nada pegar para ler. Pensei em ir até a livraria da rodoviária comprar uma revista mas, quando tirei os fones, ele falou comigo.

-Que horas são?
-18:07
-Obrigado

E voltou a ler. Foi então que uma sequência de pensamentos se iniciou em minha mente.

“QUE. SOTAQUE. FOFO! Ele é do sul, com certeza. Será que veio pra São Paulo estudar?  Se for isso, deve ser da USP. Ninguém sai da própria cidade pra fazer uma faculdade qualquer... E quem pergunta a hora hoje em dia?  Será que ele não tem celular?  ou será que está sem bateria? Que livro é esse que ele está lendo?  Ai, parece que eu já vi em algum lugar...”

-Vou ali comprar uma água, olha minhas coisas pra mim?
-Tudo bem

“Pera, é isso mesmo? Ele nem me conhece e deixou essa mala gigante pra eu ‘olhar’? Ninguém ensinou ele que não se deve confiar em estranhos? Fala sério, isso a gente aprende até na novela. Vai ver não tem nada de valor aí dentro. Ou então ele é do tipo que não liga pra coisas materiais. Engraçado, o livro ele levou. Deve ser pra ler na fila do caixa. Ah não, acho que nem tinha fila. Olha ele voltando...”

-Obrigado
-Por nada...
-Você também vai no das sete?

"Será que ele acha que só tem um ônibus que sai as sete horas?"

-Não, o meu é às sete e quinze.
-Ah, sim. Eu vou pra Lages, Santa Catarina. E você?

Tive que repetir umas quatro vezes o nome “Camanducaia” até ele entender. Ele perguntou se fazia frio lá, porque na cidade dele estava muito frio. Sem eu perguntar nada, contou que não tinha conseguido passagem de avião, por isso estava indo de ônibus. Era meio difícil entender o que ele falava. Era meio pra dentro, e bem rápido. Mas era legal. E quando ele parou de falar, fiquei tentando encontrar algo pra continuar a conversa. Olhei pro livro.

-Que livro é esse?

Ele me mostrou a capa. Era o Morte Súbita, da J.K. Rowling.

-Ah, é da autora de Harry Potter!
-Sim... você já leu?
-Harry Potter? Sim, todos

Precisei mentir. Na verdade, eu só tinha lido o primeiro e metade do segundo. É que foi na época em que eu descobri Meg Cabot. E depois de Meg Cabot, qualquer outro livro da "literatura estrangeira juvenil” tinha perdido a graça.

-Eu também. Esse aqui é mais adulto. Harry Potter até tem um vocabulário um pouco exigente, mas nem se compara com esse aqui

“Nossa, então tá”

De volta ao silêncio. Esperei alguns segundos. Ele voltou a ler. Olhei a hora e vi que ainda faltava muito tempo. Aumentei o volume da música e fiquei olhando pro nada. Mas não tanto, para o caso de ele falar mais alguma coisa. E foi o que aconteceu.

-O que você tanto ouve?
-Manu Gavassi, não sei se você conhece...
-Ah, é uma que tem a voz bem fofa e que canta músicas bem... fofas?

Pá. Sorri por dentro, e depois por fora. Aquilo era algo muito raro de se ouvir. Raro não, único. Concordei com a cabeça. Senti vontade de dar um fone pra ele ouvir também, mas achei melhor não.

Nenhum dos dois disse mais nada. Quando deu o horário ele se levantou, pegou a mala e sorriu. E foi o que eu fiz também, enquanto o acompanhava com o olhar até vê-lo sumir na multidão.